O Pequeno Príncipe segundo a Filosofia
O Pequeno Príncipe (Le Petit Prince) é um livro de romance escrito e ilustrado pelo francês Antoine de Saint-Exupéry. Essa é a terceira obra literária mais traduzida do mundo – para mais de 250 idiomas –, perdendo apenas para a Bíblia Sagrada e O Peregrino. Desde sua publicação, em 1943, o livro ocupa um espaço renomado no âmbito literário e nas estantes de leitores de todas as faixas etárias. Na França, O Pequeno Príncipe é considerado o melhor livro do século XX.
Como o narrador d’O Pequeno Príncipe, Antoine de Saint-Exupéry era piloto de avião. O escritor prestou serviço militar à França no início da Segunda Guerra Mundial e escreveu a obra durante um exílio nos Estados Unidos, enquanto tentava convencer o país a entrar na guerra contra a Alemanha nazista. O contato direto com a guerra pode ter influenciado a história em vários aspectos, especialmente nas críticas à sociedade entre guerra, apresentadas metaforicamente durante a viagem do Principezinho.
Apesar das características próximas da literatura infantil (com parágrafos curtos, vocabulário acessível e aquarelas), O Pequeno Príncipe também pode ser considerado literatura filosófica. Saint-Exupéry sutilmente aborda, por exemplo, parábolas existencialistas e questões aprofundadas por Nietzsche.
Confira algumas citações da obra interpretadas sob olhar filosófico:
“Vivi, portanto, só, sem amigo com quem pudesse conversar, até o dia, cerca de seis anos atrás, em que tive uma pane no deserto do Saara. Alguma coisa se quebrara no motor. E como não tinha comigo mecânico ou passageiro, preparei-me para empreender sozinho o difícil conserto. (...) Estava mais isolado que o náufrago numa tábua, perdido no meio do mar. Imaginem então a minha surpresa quando, ao despertar do dia, uma vozinha estranha me acordou. (...) E vi o pedacinho de gente inteiramente extraordinário, que me considerava com gravidade.”
Durante uma corrida aérea, Saint-Exupéry e seu copiloto André Prévot realmente caíram no deserto do Saara. Depois de quatro dias, desidratados e tendo alucinações, os pilotos foram salvos por um Beduíno.
Também é possível que o retrato do Pequeno Príncipe tenha ligação com a aparência do autor em sua juventude. Quando criança, Saint-Exupéry era chamado de Roi-Soleil (Rei do Sol) por causa de seus cabelos loiros e encaracolados como os do Principezinho.
Levando ambas as informações em consideração, é possível fazer uma analogia entre o eu-adulto e o eu-criança do escritor. O adulto, solitário no deserto, sem visão do horizonte ou do futuro, reencontra no vazio sua pureza infantil. Da pureza e do isolamento, renasce o pensamento de amor esquecido pelas coisas simples e de fácil percepção.
A história, sobre resgate interior, conta a trajetória do narrador na busca do objetivo de todo o filósofo: conhecer a si mesmo.
“Tu te tornas eternamente responsável por aquilo de cativas.”
Uma das frases mais famosas d’O Pequeno Príncipe não foi literalmente traduzida do francês. A citação original é: “Tu deviens responsable pour toujours de ce que tu as apprivoisé”, que se aproxima mais de “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que domestica”.
Enquanto “cativar” diz respeito a encantar e seduzir, “domesticar” fala de tornar um ser dependente do lar. Assim, toda a reflexão se altera. Somos responsáveis por aqueles que tornamos dependentes de nós, que sem nós não sobreviveriam.
“Pode ir, tudo bem, mas se for voltar, não espere que eu seja a mesma pessoa.”
O filósofo Heráclito foi quem afirmou que jamais poderíamos pisar no mesmo rio duas vezes: a correnteza faz com que as águas sejam diferentes, e quem adentra o rio também mudou. Heráclito dizia que “o real é sempre fruto da mudança”. Tudo está em constante mutação.
“Caminhando só pra frente a gente não vai muito longe.”
Essa frase pode ser associada à doutrina do Eterno Retorno: um conceito filosófico do tempo postulado. O eterno retorno seria a extinção do próprio mundo, destruído em chamas, e seu renascimento das cinzas. Após o renascimento, tudo se repete até que o mundo queime e novamente renasça, como um trabalho eterno. A regressão e desconstrução são necessárias para que o novo renascimento ocorra.
“Todas as pessoas grandes foram um dia crianças – mas poucas se lembram disso.”
Segundo Nietzsche, crianças são “espíritos livres”. Uma criança que ainda não foi socialmente inserida cria, pinta e constrói – é uma artista, e sua arte são seus próprios valores. A espontaneidade infantil, a coragem de mostrar o que é puramente o desejo sem culpa pelo prazer é total ou parcialmente perdida enquanto o homem é “domesticado” para conviver em sociedade. Quando nos tornamos “pessoas grandes”, reprimimos o desejo e o afeto. A criança é a pura natureza humana, espontânea, sem cárcere da alma.
“Os homens embarcam nos trens, mas já não sabem mais o que procuram.”
Ao contrário das crianças, ainda segundo Nietzsche, adultos civilizados fazem dualidades entre o bem e o mal, o certo e o errado, o bom e o ruim. Os “impulsos animais” se tornaram “impulsos humanos”, o modelo “correto” de ser homem é ditado durante a inserção social do indivíduo. Durante a inserção aprendemos a controlar impulsos, desejos, afetos – deixamos de ser crianças. Nesta frase, os trens podem ser o modelo social convencional, que levam o homem a lugares pré-programados e não ao ponto aonde chegariam se andassem com os próprios pés, seguindo a intuição.
“A ordem não cria a vida.”
Nietzsche tratava a vida como uma obra de arte. O mundo é o fluxo e o caos: não existem regras. O mundo se destrói e reconstrói, como uma criança que brinca. Vivemos numa eterna luta e contradição.
“É preciso que eu suporte duas ou três larvas se quiser conhecer as borboletas.”
Nietzsche chamava de “Amor Fati” a aceitação da vida como um todo – o destino humano em sua beleza e crueldade. A aceitação que o Pequeno Príncipe demonstra diante das diferencias circunstâncias ocorridas durante a viagem dá a entender que tudo é belo e merece ser aproveitado com atenção. Como quando o Principezinho diz que pessoas gostam do pôr-do-sol quando estão tristes, e em seguida ressalta que assistiu o sol se pôr quarenta e quatro vezes num só dia. Apenas “espíritos superiores” são capazes de alcançar o Amor Fati.
“Só conheço uma liberdade, e essa é a liberdade do pensamento.”
Durante o livro, podemos facilmente encontrar pensamentos que se vinculam à teoria filosófica existencialista. O existencialismo, desenvolvido por Søren Kierkegaard e aprofundado por Jean-Paul Sartre, afirma que “a existência humana precede sua essência; seu propósito”. O homem é livre para decidir seu próprio caminho, mas está preso à angústia de decidi-lo sem regras, por si só. O Príncipe prova a angústia de comandar o próprio destino ao decidir viajar e deixar seu pequeno planeta, com os baobás perigosos e sem regar a Rosa.
“Só crescemos à medida que nos damos a algo mais alto que nós mesmos.”
O pensador existencialista Karl Jaspers defendia que só o próprio homem, através de seus esforços, era capaz de encontrar a “verdade” para si. Para isso, entretanto, eram necessários “companheiros de pensamento”, como a Raposa, o Rei, o Bêbado e o Homem Rico com quem o Pequeno Príncipe conversa durante a viagem.
O Pequeno Príncipe, em sua rica simplicidade, pode ser tratado como a história do equilíbrio que deve ser mantido entre o adulto e a criança interior. A desconstrução do “eu”, a idealização de novos ideais. A construção do pensamento lógico e artístico baseado na bacia semântica do ser que faz e desfaz o próprio mundo, como uma criança que brinca. A história do eterno, disparado e incessante movimento de todas as coisas.